terça-feira, 22 de novembro de 2016

Carolyn Forché: o que vês na TV

Super-activista, ultra-esquerdista ( muita coisa sobre El Salvador)  empenhada, feminista etc. Escolhe, e muito bem, a poesia testemunhal: com ela  não há floreados, as coisas são o que são. Americana, coberta de prémios, tem agora 66 anos. 
Podes ler isto em voz alta de cada vez que na tua sala entram as criancinhas de Alepo:
 
 
 
Sleep to sleep through thirty years of night,
a child herself with child,
for whom we searched

through here, or there, amidst
bones still sleeved and trousered,
a spine picked clean, a paint can,
a skull with hair


Sewn into the hem of memory:
Fire.
God of Abraham, God of Isaac, God of Jacob,
God not
of philosophers or scholars. God not of poets.

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Hofmannsthal-Rilke, discussões

A 1 de Novembro de 1905, em Viena, Hofmannsthal escreve  a Rilke. Correspondiam-se muito , mas nessa carta  há um facto notável. Rilke tinha enviado  três poemas para a Neue Rundschau e Hofmannsthal agradece, mas pergunta-lhe: porquê pôr esses versos em prosa?
Claro que sempre existiu, mas a prosa poética na  altura ainda não era muito comum se bem que vários consagrados  a usassem:  de Novalis a Heine, Eliot , o próprio Rilke etc
Aproveite-se  um poema ( Namen) de Hofmannsthal em que ele  responde à pergunta que fez ao amigo ( trad de Jean-Yves Masson):

Viége est le nom d'une rivière écumante. Goethe est un autre nom.
Là le nom vient de la chose; ici celui qui le porte en a créé la résonance.

 

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Casais Monteiro: fallando comsigo

Pessoa escreve-lhe no português da altura  ( não se pode mudar  a língua. não é?):  como se estivesse fallando comsigo, para que possa escrever immediatamente.
Casais Monteiro fala como estivesse na nossa sala, recostado num sofá, um cigarro na mão, o olhar no tecto:

Não tenho remorsos do passado. O que vivi, vivi.
Tenho, talvez, desprezo
por esta débil haste que raramente soube
merecer os dons da vida,
e se ficava hesitante
na hora de passar da imaginação à vida

( in Sempre  e Sem Fim, 1937)

sábado, 15 de outubro de 2016

O outro Dylan : impostos sobre o ar

Que certamente muitos indignados  com o actual Dylan ( nele se inspirou)  nobelizado estão fartos de ler. É um freguês  frequente das minhas perambulações blogueiras e hoje escolho o poema que titulou uma (já) velhinha edição  ( A mão ao assinar este papel, Assírio, 1998)  organizada  e prefaciada por Fernando Guimarães:

The hand signed this paper felled a city;
Five sovereign fingers taxed the breath,
Doubled the globe of dead and halved a country;
These five kings did  a king to death. 

Sim, Guimarães traduz correctamente ( breath-respiração), mas prefiro o ar.
Ide ler o resto do poema.



domingo, 21 de agosto de 2016

Tremendistas e sandeus

O Auto de Mofina Mendes ( completa com o da Cananeia e o Breve Sumário a triologia dos Mistérios da Virgem ) é um pedacito de propaganda  política de Gil Vicente contra Henrique VIII e as sarrafuscas com  o Papa. 
É  um bom pretexto para revisitar  a tradição, também portuguesa, de tremendismo e  anúncio da decadência. Desde  1534 pouco mudou:

Sem memória nem cuidado
dormem em cama de flores
feita de prazer sonhado.
( ...)
 Todo  o mundo está mortal,
Posto em tão escuro porto
De uma cegueira geral,
Que nem fogo, nem sinal,
Nem vontade : tudo é morto.

Justo recordar  o humor que pode ter o anúncio da decadência do mundo.  A abrir o Auto, o Frade  anuncia:

Três coisas acho que fazem
ao doido ser sandeu:
a uma, ter pouco siso de seu,
a outra, que esse que tem 
nem lhe presta nem mal nem bem;
e a terceira,
que endoidece em grã maneira,
é o favor ( livre-nos Deus)
que faz do vento cimeira,
do toutiço moleira,
e das ondas faz ilhéus.








segunda-feira, 25 de julho de 2016

João Miguel Fernandes Jorge, de novo:

Importa que não haja ilusões sobre este ponto  : é
que todos podemos morrer  de sede em pleno mar.

( Alguns Círculos, 1975)

De certa forma, de todas as formas, isto é um anúncio contra o tabagismo.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Cozinha canibal

Escolha um político maduro,
mas que não seja muito velho.
Faça a incisão  como nas lampreias
e retire-lhe as promessas  leva-as-o-vento
( quanto mais velho, mais tem).

Besunte-o com alho e sal
e no jardim
recolha um ramimho de  politólogos viçosos.
Lave-os muito bem e recheie o bucho do político.

Tempere tudo com pó dos Espírito Santo,
ligue a televisão  nos 200º
e deixe cozer até à hora do telejornal.

terça-feira, 19 de julho de 2016

Europa


O que perdeste não podia ser teu
e isso chega  para te conformares.

Podes
submeter uma moção,
convocar raivosos,
desenhar o pedal único,
incendiar  um pardal.

Deves, no entanto, aprender
com Teógnis
e considerares-te
uma cidade saqueada.



segunda-feira, 18 de julho de 2016

Margaret Widdemer

I saw the little daughters of the poor,
Tense from the long day's working, strident, gay,
Hurrying to the picture-place. There curled
A hideous flushed beggar at the door,
Trading upon his horror, eyeless, maimed,
Complacent in his profitable mask.

A poesia tem esta capacidade de  síntese. O trabalho infantil e  a pobreza sem floreados burocráticos nem trombetas políticas. A Margaret  nasceu na Pensilvânia e morreu,  em 1978, com 94 anos. 
Viu muito, contou muito.



domingo, 17 de julho de 2016

Instalação *

Sexo com calor 
obriga a cuidados redobrados,
diz  a direcção-geral de saúde:

lavem os dentes antes,
verifiquem a temperatura do óleo
e
usem parceiros descartáveis.

O director-geral vela por vós. 









quinta-feira, 14 de julho de 2016

Milosz, contra a mente captiva

I am afraid, so afraid of the guardian mole.
He has swollen eyelids, like a Patriarch
Who has sat much in the light of candles
Reading the great book of the species.

( 1943)

The captive mind, prosa, bandeira anti-estalinista, é famoso Nasceu lituano, morreu americano. Milosz foi Nobel em 1980, desceu na divisão da memória mediática e agora joga nos distritais. O pedaço do poema é da memoria do gueto de Varsóvia.  
Lutou pela resistência polaca contra os nazis, trabalhou para o regime comunista posterior, mas depois, claro, dissidiu: "O meu país tornou-se uma província do império", frase célebre numa entrevista ao Washington  Post.  Em Paris juntou-se ao pessoal da Kultura.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Sançõessasse


Um governo que governasse
o povo que amasse
ou
um povo que maçasse
o governo que passasse.

terça-feira, 12 de julho de 2016

O passado

Larkin escreve a Monica, 13 de Setembro de 1954. Está em Loughborough, a reler entradas do seu diário do primeiro semestre de 1941.  I depressed myself slightly. Isto porque reconhece um adolescente ( 19 anos) tolo que pregas partidas a gente desprevenida  e tem prazer em coisas infantis. Diz a Monica que tem de arranjar maneira de destruir os diários quando morrer.
O que tem piada é a conclusão paradoxal:

I am  no more master of my destiny than a tomcat is master of the Queen Mary.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

sexta-feira, 8 de julho de 2016

Técnicas de vida

Gide a Valéry ( 11 Novembro de 1894) : É por instinto que nunca vou ao fundo das coisas, só amo os círculos viciosos.  Põr as peles em cimas das peles, não ligar às roupas dos outros. Fico feliz por encontrar defeitos na minha técnica de vida. Esta expressão técnica de vida, Gide atribui-a a Gustav Kahn, que por acaso   foi  o autoproclamado autor do verso livre que Valery só usou a espaços.

Não ir ao fundo das coisas é da boa poesia e das discussões conjugais. Ambas são técnicas de vida e nelas estamos sempre à procura dos defeitos.

quinta-feira, 7 de julho de 2016

Vidas

Ela esperou por ele toda a vida,
ele esperou por ela a vida toda.

Isto no tempo
em que se levava uma
vida inteira
para ter
uma vida.

quarta-feira, 6 de julho de 2016

Folgar, tanger e bola

O grande  Gil, no Auto de Inês Pereira. Actualizei a grafia, deixei ficar a pontuação original.
Portugal por estes dias e em vários departamentos:


Sempre tu hás-de bailar
e sempre ele há-de tanger?
Se não tiveres que comer,
o tanger te há-de fartar?

para depois :


Eu não tenho  mais de meu
somente ser comprador
do Marechal meu senhor,
e sou escudeiro seu.
Sei bem ler
e muito bem escrever,
e bom jogador de bola,
e, quanto a tanger viola,
logo me vereis tanger.

terça-feira, 5 de julho de 2016

Un certain regard



Sei o que  devia fazer
e o que não é necessário
imaginar,
porque me foi ordenado
tantas vezes
que já me doem
as vontades de recusar.


segunda-feira, 4 de julho de 2016

O melancólico Lenau

Nasceu em terra húngara agora romena e rebaptizada com o seu nome: Lenauheim. Meio chalupa da cabeça, chegou a viver nos EUA com uns místicos de uma sociedade ( os harmonistas)  fundada por um autoproclamado profeta, George Rapp. Depressivo, apaixonado pela mulher de um amigo, morreu com quarenta e oito anos, em Viena, em 1850.
 Desenrola aqui uma harmoniosa ( não harmonista) definição anti-estóica:


Heart, 'tis fatal thus to harken,
Let not fear thy courage darken,
Though the past be all regretting
And the future helpless fretting.

( trad. Nick Tullius)

domingo, 3 de julho de 2016

Brexit


Os ausentes não notaram
que os presentes se preocupavam muito
com o futuro de todos.
Foi então que se inventou o voto:
Seremos eleitos para proteger
os nossos interesses
como se fossem os vossos.

sexta-feira, 1 de julho de 2016

O fantástico Cesariny

"Os menos desprevenidos emalaram tudo, espavoriram para o Longe, com irmãos e famílias, buscando entre a fuligem das bibliotecas uma página branca onde encostar a cabeça".

( Titânia, 1994)

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Nicolau Tolentino, o pré-marxista

E bom. Conheci-o num escrito de Nemésio sobre Bocage. Oficial da Secretaria de Estado  dos Negócios do  Reino, morreu em 1811. Tem a poesia reunida numa edição de 1861 ( José Torres, Lisboa).
O fatalismo, a falta de mobilidade social, a rigidez pós feudal. Let's look at the trailer:

Entre faixas de pobreza
meus tristes  pais me envolveram.
Desde então, em crua empresa,
contra mim as mãos se deram
a fortuna e a natureza.

(...)
Toma os tristes cabedais
em que teu fado te lança:
toma pranto e inúteis ais;
entra na funesta herança
de teus desgraçados pais!

terça-feira, 28 de junho de 2016

A comunidade negativa

O termo é de Bataille: a comunidade dos que não têm comunidade. A poesia sem  muletas nem croquete faz parte da comunidade negativa. Até é uma peça, não um poema, o que melhor ilustra a comunidade negativa: Édipo em Colono. Infelizmente os bertoldos freudianos popularizaram a outra aventura de Édipo.
A rhesis traz  a chegada de Édipo velho e cego, amparado por Antígona, ao bosque de Colono. É a maldição do  exilado mas também do que sabe. Tem uma dadiva para Teseu:

- Estrangeiro : E que ajuda pode vir de um homem privado de vista?
- Édipo: Aquilo que eu disser terá visão infalível.

A rhesis poética, a verdadeira, a da Bayer, também é assim. Por exemplo, com Montale:

Fizemos 
o nosso melhor para piorar o mundo.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

O que diria o O'Neill sobre a barragem do Tua

Nuncam jantam, quando jantam,
onde almoçam, quando almoçam.

Condenados, pois claro, à revelia,
o que deixam é um nome nos arquivos
e continuam maus , sornas e vivos.
(...)

Aceitam trabalho aqui,
mas sobretudo acolá.

É gente de pau e manta,
o minha linda,
gente que pra ti não há.


( O'Neill, Feira Cabisbaixa, 1965)

quinta-feira, 23 de junho de 2016

O equivalente poético da igreja anglicana

No século XVI os ingleses sofriam imenso. Não tinham nada equivalente ao hexâmetro  ( seis pés de verso) dactílico  dos latinos, assente na alternância das sílabas longas e das curtas. Quinto Ênio e sobretudo os mais conhecidos Virgilio e Ovidio, lançaram a moda.  
O inglês era a língua para o povoléu e para a administração pública. Como não tinham sílabas longas/curtas, inventaram  as sílabas átonas / tónicas.  Chaucer foi um dos primeiros a martelar o pentâmetro jâmbico ( cinco pares de sílabas  acentuadas/ não acentuadas  em alternância), mas foram Norton e Sackville  a publicar o protótipo, a versão anglicana dos clássicos latinos:

My gracious lady and my mother dear,
Pardon my grief for your so grievèd mind
To ask what cause tormenteth so your heart.
Videna So great a wrong and so unjust despite.
Without all cause against all course of kind!

Depois iremos ao William.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Bocage

Não lamentes, ó Nize, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putissimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas teem reinado:


 
 
 
(Soneto de todas as putas)
 
 
 

terça-feira, 21 de junho de 2016

A caixa geral de depósitos, 1608

Rodrigues Lobo é conhecido pelo Descalça vai para a fonte / Leonor pela verdura /Vai formosa e não segura, mas tem outras  coisas muito interessantes. Poeta do reino, protegido da casa de Bragança, morreu afogado no Tejo em 1662.
Definiu precocemente uma certa forma portuguesa de estar. De Pastor Peregrino, Liv.I, Jornada Segunda:

E deste modo  com todo estou bem e nenhum me faz mal. Não digo verdades  que amarguem nem tenho amizades que  me profanem;  não adquiro fazendas que  outros me invejem, porque, neste tempo, das melhores  três cousas dele, nascem as mais danosas que há no mundo; da verdade, ódio; da conversação, desprezo; da prosperidade, inveja.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Uma ideia do debate europeu e dos refugiados, par René Char

O René, velho freguês  dos meus blogues, descoberto  pelo Sócrates quando esteve preso ( o que mostra que nem tudo é mau):

Homme, 
J'ai peur du feu
Partout  où  tu te trouves

Animal
Tu parles
Comme un  homme

( Arsenal, 1927-1929)

99% da poesia portuguesa actual:

domingo, 19 de junho de 2016

O Natal de João Miguel Fernandes Jorge

Comprei o primeiro em 1982:  Poemas escolhidos,  publicados pela Assírio ( col. cadernos peninsulares/literatura 21). Esta crítica balofa  "em João Miguel Fernandes Jorge, há uma hiperconsciência da brevidade da vida" pouco ou nada faz ganhar leitores ao Jorge. O artigo tem zero comentários. Fica aqui um.
 E fica também um pedaço , tirado da referida edição. É tão simples que dói:

E eu ia ao Sanguinhal visitar a minha prima que 
tinha um cavalo debaixo do quarto

subindo de vales descendo de montes
acompanhando a  banda do Carvalhal com ferrinhos

e roucas trompas  o meu Natal  é ainda o Natal  de
minha mãe com uns restos de canela e Beira Alta.


sexta-feira, 17 de junho de 2016

Betocchi , o católico, e problemas de tradução

Fundou com Bargellino a católica  Frontespizio. Católico, nem tanto místico, mais da aproximação epicurista e estóica. Pouco acarinhado fora de Florença.
O Rovine ( Ruínas) , de 1955, é muito perfeito na contenção desesperada. Abre assim:

Non è vero che hanno distrutto
le case, non è vero:
solo è vero in  quelo  muro diruto
l'avanzarsi del cielo.

traduzo assim:

Não é verdade que tenham destruído
 as casas; não é verdade :
a única verdade naquele muro destruído
é o avançar do céu.

Roberta   Payne traduz assim os dois últimos versos:

The only thing  that's true in that dilapidated wall
is the advance of the sun.

Abaixo os tradutores esperançosos.


quinta-feira, 16 de junho de 2016

Era um Adolfo, mas Salazar não gostava

Voo sem pássaro dentro ( 1954): a única maneira de enfiar pássaro  em qualquer coisa  relacionada com a poesia. E mesmo assim...
Adolfo Casais Monteiro, outra vez.  Esquecido  nos dias de hoje pelos jornalistas culturais, mas a gente senta-o neste escanos periféricos que são os blogues. É um tipo de outro mundo, de um mundo em que não se podia escrever, dirigir ou falar. Graças ao botas de Santa Comba e  ao seu regime de contas em ordem.  Infelizmente, aldrabões como este  acham que é o capitalismo que asfixia  a cultura , fingindo esquecer estas amostras de cultura  libertária.

Bem, let's  look at the trailer.  Casais  Monteiro explica como a sociedade nos atraiçoa:

Como é possível  não ouvirmos o estertor das nossas vidas
quebradas de encontro ao pilar das barragens,
esbracejando nos redemoinhos, arrastadas
para o mar imenso da vida não cumprida...





quarta-feira, 15 de junho de 2016

A Natureza

Queriam calor e praia ? Têm chuva.
Adolfo Casais Monteiro chamava a esta técnica de Pessoa a deslocação das  zonas de interesse.
Versão Alberto Caeiro:

Como quem num dia de verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos.


terça-feira, 14 de junho de 2016

Wurde

Barrento , que o traduziu pela primeira vez para nós (  Cotovia, 1990), regista a intenção  de Bobrowski:  Wurde,  a dignidade ( atitude) que permite deitar fora a dignidade. Belíssimo pretexto.
Bobrowski recebeu prémios literários na RFA e na RDA. Pouco lido? Talvez, mas que nos importa isso?

Abusa como um demente das árvores, dos pássaros, da água, mas é um poeta da paisagem, enfim, aceitemos. Apesar disso, uns pedaços  bem esgalhados ( Sinais de tempo) :

Levo para os cálamos
a minha casa entrançada.
O caracol 
inaudível
passa pelo meu telhado.
Gravado
na palma das minhas mãos
encontro o teu rosto.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Verde e bom

Cesário, quando não está a dardejar os ricos do norte que comem as nossas frutas naturais, arranca estes passes de peito. O segundo verso é revolucionário.

Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre  e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

( 1875, orig. na Moisaco,nº6)

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Criminaliza agora este piropo

Graças a A. Cândido Franco e, sobretudo,  à melhor empresa pública portuguesa, podemos ler  coisas raras. Como João Lúcio. Maldito  no sentido literal porque ignorado, não reeditado, esquecido.
João Lúcio, do grupo da Renascença ( com Pessanha,  Pascoaes, Gomes leal etc) é o freguês de hoje.

De Na Asa do Sonho ( 1913) , uma coisa fabulosa.  Sobre um tema gastíssimo, um toque de calcanhar  precedido de uma chicuelina:

Que se gosto  de ver, aflita entre o cabelo,
O teu cabelo em chuva, uma rosa afogada,
É só para poder, mais tarde, descrevê-lo,
Com a rosa a sofrer, numa rima agitada.

terça-feira, 7 de junho de 2016

The mad dog

Etheridge. Quem quiser conhecer. 
Isto é o que se chama punch, suponho:

Lord she's gone done left me done packed / up and split
and I with no way to make her
come back and everywhere the world is bare
bright bone white crystal sand glistens
dope death dead dying and jiving drove
her away made her take her laughter and her smiles
and her softness and her midnight sighs--

Fuck Coltrane and music and clouds drifting in the sky
fuck the sea and trees and the sky and birds
and alligators and all the animals that roam the earth
fuck marx and mao fuck fidel and nkrumah and
democracy and communism fuck smack and pot
and red ripe tomatoes fuck joseph fuck mary fuck
god jesus and all the disciples fuck fanon nixon
and malcom fuck the revolution fuck freedom fuck
the whole muthafucking thing
all i want now is my woman back
so my soul can sing

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Fascismo na poesia e a opinião de Hatlen sobre as raízes marxistas do fascismo

D'Annunzio e Pound. Brasillach  não conta,  não era poeta, Pierre Antoine-Costeau ( irmão do mergulhador) também não.D'Annunzio trouxe-o algumas vezes aos blogues, pré-futurista, teve o seu lugar. Pound é de outra galáxia. É o único.

 Burton Hatlen, amigo de Ginsberg, académico, militante anti-Vietname e anti guerra do Iraque,  e fundador de campus literários marxistas-socialistas:


Hatlen explica duas coisas:
a) a conexão entre fascismo e marxismo,
b) por que motivo não há uma poesia fascista. 

A primeira ilustra o assunto que tanto incómodo causou recentemente cá na terra. A segunda serve-me: uma teoria geral da destruição não conhece a linguagem da criação.

domingo, 5 de junho de 2016

Bursa

I’d been waiting years
Until the Prophet came
He held forth all night
Smoked all my cigarettes
I didn’t understand a thing

( trad  Wiesiek Powaga 2007)

 Andrzej  Bursa era  um polaco e um  personagem cheio de humor. Nasceu em 1932 , publicou pela primeira vez aos 22 anos, morreu aos 25.  Desmente a maneira pomposa como os palúrdios citam a famosa frase.  O próprio  Adorno explicou  melhor depois ( Negative Dialectics):
"Perennial suffering has as much right to expression as a tortured man has to scream; hence it may have been wrong to say that after Auschwitz you could no longer write poems. But it is not wrong to raise the less cultural question whether after Auschwitz you can go on living--especially whether one who escaped by accident, one who by rights should have been killed, may go on living".

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Púbico/privado

Ulla Hahn defende que não existe separação entre o público e o privado , os dois pólos têm de estar sempre ligados e que  uma  das grandes contribuições do  movimento feminista foi tornar essa conexão óbvia de novo ( numa entrevista citada  aqui) . É capaz de ter razão.

Como é que isso aparece na poesia de Hahn? Por exemplo:

Faço o meu ninho na axila
do homem com o elmo de ouro. Se ele anda
eu imóvel ando também. Se ele dobra
o corpo eu em pé faço o mesmo.

( trad. de João Barrento)

quinta-feira, 2 de junho de 2016

O twitter em 1797

4 de Abril de 1797. Schiller escreve   a Goethe. Correspondem-se imenso. Nesse dia ,  sobre Filoctetes e  As Traquínias: as personagens  são máscaras e não indíviduos, sendo assim mais fácil manifestar a sua natureza. 
Goethe responde no dia seguinte ( um twiter  pré-histórico):  as personagens da poesia  antiga  traduzem, como as figuras da escultura , uma ideia abstracta, atingem  a perfeição graças ao que podemos  chamar de estilo.

Heranças do estilo? Por exemplo, Ungaretti, Sentimento del Tempo, 1933. Os mortos só conhecem  o som da relva a crescer, contentes de o homem não a pisar :

Hanno l'impercettibile sussurro,
Non fanno più rumore
Del crescere dell'erba,
Lieta dove non passa l'uomo.

terça-feira, 31 de maio de 2016

Forma/conteúdo

 Correspondeu-se com Williams Carlos Williams que o levou ao Olsson. Fez parte do grupo de Black Mountain. A forma nunca é  mais do que uma extensão do conteúdo. Robert  Creeley:.
 
 
When I know what people think of me
I am plunged into my loneliness.  The grey
 
hat bought earlier sickens.
I have no purpose no longer distinguishable.
 
A feeling like being choked
enters my throat.

 ( The Collected Poems of Robert Creeley: 1945-1975,University of California Press)

Traição, só traição

Alguns  bons poetas americanos discutem a função social da poesia. Felizmente, em regra não lhe atribuem nenhuma. Lembro-me sempre do Carlos Oliveira e do seu futuro com máquinas de escrever poemas.
Se  a legião -  inclui esta coisa  com lantejoulas e abóbadas, a banana frita e o IRS - é esmagadora,  a poesia é o que  a trai adrede. À sorrelfa, com estilo , ultra-humana, no sentido aristocrático que Frederico Ferrari utiliza.

Um exemplo,de Benn:

Muito grave: ser convidado,
quando lá em casa há mais  sossego,
o café é melhor
e não é preciso conversar.

O mais grave de tudo:
não morrer no Verão,
quando tudo é claro
e  a terra é leve para  a enxada.

( trad de V.Graça Moura, Ed Relógio D'Água )


segunda-feira, 30 de maio de 2016

Coke La Rock e Píndaro

Em hexâmetros ou pentâmetros, o epíteto facilitava a forma original da poesia grega: a oral. Como o orador , o poeta recitava; por mais fabulosa memória que possuísse, era-lhe impossível manter o poema inalterado. O epíteto, no original a repetição de uma ideia normalmente  associada a uma personagem, ombreia com fórmulas  bem descritas da poesia épica oral. Acaba por dar origem ao refrão, na bela síntese  de Parry:  Far from being formulas by which he would regularly express his idea under certain metrical conditions, these phrases were to him fine expressions which his mind had kept solely for their beauty, and which the chance of his verse now let him use  ( 1930 , Harvard Studies in Classical Philology 41:73–148)

O rap tem a raiz oral mais diferenciada do que outros estilos contemporâneos. A origem do rap - batida - reporta-se a conversa, responder a uma pergunta. Sim, os campos de algodão, os escravos, a tradição negra, mas o rap nasce na cidade. E aí  a urb, do muro grego fundador.
 Seja como for,   basta  a um português ler as descrições de Serpa Pinto, Capelo e Ivens, Galvão. Nas sanzalas, em volta do soba,  a tradição oral  é evidente. Píndaro e Homero de volta da fogueira.

Anos 70, EUA, Coke La Rock:

There’s not a man that can’t be thrown, not a horse that can’t be rode, a bull that can’t be stopped, there’s not a disco that I Coke La Rock can’t rock”.

O dachdecker

Tudo o que há de inferior em nós, homens reles,
Tudo o que até já nem faz raiva
mas apenas piedade e  asco,
Tudo isso é meu.

Isto é do melhor. Nós, os reles, conseguimos  provocar piedade e asco. Um ligeiro tom cripto-hermético  ( só os tontos vêem obscuridade) dos meus amadíssimos.

Gosto de Cristovam Pavia ( aka Bugalho) quando compreende o Criador ( sou um vómito de Deus) do sofrimento provado. Na Alemanha fez psicoterapia e trabalhou na construção ( assentou telha, daí o título desta entrada, roubado ao Fernando Martinho), mas em Portugal foi da fina flor do círculo católico  de O Tempo e o Modo: Bénard da Costa, Támen etc.

Infelizmente, abusa de  pastilhas como  trémulas orvalhadas  e até tem um Poema de Amor com os obscenos  árvores e frutos. Alguns tipos acreditam que obsceno pode ter  raiz grega : ob skena, o que deve ficar fora do palco, da cena.

domingo, 29 de maio de 2016

Goethe pop sinfónico

Eyes tell, tell me, what you tell me,
telling something all too sweet,
making music out of beauty,
with a question hidden deep.


1820. Podemos  imaginá-lo cantado pelos Pink Floyd.
Ou na voz da Nathalie.

Gado de prata

 Fiama, 1976:


Nos subúrbios há ainda o gado de prata
a pascer entre miríades de seres
exilados como eu que estou cega, no pesadelo,
e visonária quando assisto à força da Natureza.


Fiama ganhou carta  de alforria nos cadernos Poesia 61 . Na tertúlia do Saldanha , com Carlos de Oliveira, Herberto Hélder, Abelaira , entre outros, já era uma semideusa.
Metade da sua poesia é sonolenta , um quarto é pomposa. O outro quarto é almofadado e  com uma bela janela.