quinta-feira, 30 de junho de 2016

Nicolau Tolentino, o pré-marxista

E bom. Conheci-o num escrito de Nemésio sobre Bocage. Oficial da Secretaria de Estado  dos Negócios do  Reino, morreu em 1811. Tem a poesia reunida numa edição de 1861 ( José Torres, Lisboa).
O fatalismo, a falta de mobilidade social, a rigidez pós feudal. Let's look at the trailer:

Entre faixas de pobreza
meus tristes  pais me envolveram.
Desde então, em crua empresa,
contra mim as mãos se deram
a fortuna e a natureza.

(...)
Toma os tristes cabedais
em que teu fado te lança:
toma pranto e inúteis ais;
entra na funesta herança
de teus desgraçados pais!

terça-feira, 28 de junho de 2016

A comunidade negativa

O termo é de Bataille: a comunidade dos que não têm comunidade. A poesia sem  muletas nem croquete faz parte da comunidade negativa. Até é uma peça, não um poema, o que melhor ilustra a comunidade negativa: Édipo em Colono. Infelizmente os bertoldos freudianos popularizaram a outra aventura de Édipo.
A rhesis traz  a chegada de Édipo velho e cego, amparado por Antígona, ao bosque de Colono. É a maldição do  exilado mas também do que sabe. Tem uma dadiva para Teseu:

- Estrangeiro : E que ajuda pode vir de um homem privado de vista?
- Édipo: Aquilo que eu disser terá visão infalível.

A rhesis poética, a verdadeira, a da Bayer, também é assim. Por exemplo, com Montale:

Fizemos 
o nosso melhor para piorar o mundo.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

O que diria o O'Neill sobre a barragem do Tua

Nuncam jantam, quando jantam,
onde almoçam, quando almoçam.

Condenados, pois claro, à revelia,
o que deixam é um nome nos arquivos
e continuam maus , sornas e vivos.
(...)

Aceitam trabalho aqui,
mas sobretudo acolá.

É gente de pau e manta,
o minha linda,
gente que pra ti não há.


( O'Neill, Feira Cabisbaixa, 1965)

quinta-feira, 23 de junho de 2016

O equivalente poético da igreja anglicana

No século XVI os ingleses sofriam imenso. Não tinham nada equivalente ao hexâmetro  ( seis pés de verso) dactílico  dos latinos, assente na alternância das sílabas longas e das curtas. Quinto Ênio e sobretudo os mais conhecidos Virgilio e Ovidio, lançaram a moda.  
O inglês era a língua para o povoléu e para a administração pública. Como não tinham sílabas longas/curtas, inventaram  as sílabas átonas / tónicas.  Chaucer foi um dos primeiros a martelar o pentâmetro jâmbico ( cinco pares de sílabas  acentuadas/ não acentuadas  em alternância), mas foram Norton e Sackville  a publicar o protótipo, a versão anglicana dos clássicos latinos:

My gracious lady and my mother dear,
Pardon my grief for your so grievèd mind
To ask what cause tormenteth so your heart.
Videna So great a wrong and so unjust despite.
Without all cause against all course of kind!

Depois iremos ao William.

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Bocage

Não lamentes, ó Nize, o teu estado;
Puta tem sido muita gente boa;
Putissimas fidalgas tem Lisboa,
Milhões de vezes putas teem reinado:


 
 
 
(Soneto de todas as putas)
 
 
 

terça-feira, 21 de junho de 2016

A caixa geral de depósitos, 1608

Rodrigues Lobo é conhecido pelo Descalça vai para a fonte / Leonor pela verdura /Vai formosa e não segura, mas tem outras  coisas muito interessantes. Poeta do reino, protegido da casa de Bragança, morreu afogado no Tejo em 1662.
Definiu precocemente uma certa forma portuguesa de estar. De Pastor Peregrino, Liv.I, Jornada Segunda:

E deste modo  com todo estou bem e nenhum me faz mal. Não digo verdades  que amarguem nem tenho amizades que  me profanem;  não adquiro fazendas que  outros me invejem, porque, neste tempo, das melhores  três cousas dele, nascem as mais danosas que há no mundo; da verdade, ódio; da conversação, desprezo; da prosperidade, inveja.

segunda-feira, 20 de junho de 2016

Uma ideia do debate europeu e dos refugiados, par René Char

O René, velho freguês  dos meus blogues, descoberto  pelo Sócrates quando esteve preso ( o que mostra que nem tudo é mau):

Homme, 
J'ai peur du feu
Partout  où  tu te trouves

Animal
Tu parles
Comme un  homme

( Arsenal, 1927-1929)

99% da poesia portuguesa actual:

domingo, 19 de junho de 2016

O Natal de João Miguel Fernandes Jorge

Comprei o primeiro em 1982:  Poemas escolhidos,  publicados pela Assírio ( col. cadernos peninsulares/literatura 21). Esta crítica balofa  "em João Miguel Fernandes Jorge, há uma hiperconsciência da brevidade da vida" pouco ou nada faz ganhar leitores ao Jorge. O artigo tem zero comentários. Fica aqui um.
 E fica também um pedaço , tirado da referida edição. É tão simples que dói:

E eu ia ao Sanguinhal visitar a minha prima que 
tinha um cavalo debaixo do quarto

subindo de vales descendo de montes
acompanhando a  banda do Carvalhal com ferrinhos

e roucas trompas  o meu Natal  é ainda o Natal  de
minha mãe com uns restos de canela e Beira Alta.


sexta-feira, 17 de junho de 2016

Betocchi , o católico, e problemas de tradução

Fundou com Bargellino a católica  Frontespizio. Católico, nem tanto místico, mais da aproximação epicurista e estóica. Pouco acarinhado fora de Florença.
O Rovine ( Ruínas) , de 1955, é muito perfeito na contenção desesperada. Abre assim:

Non è vero che hanno distrutto
le case, non è vero:
solo è vero in  quelo  muro diruto
l'avanzarsi del cielo.

traduzo assim:

Não é verdade que tenham destruído
 as casas; não é verdade :
a única verdade naquele muro destruído
é o avançar do céu.

Roberta   Payne traduz assim os dois últimos versos:

The only thing  that's true in that dilapidated wall
is the advance of the sun.

Abaixo os tradutores esperançosos.


quinta-feira, 16 de junho de 2016

Era um Adolfo, mas Salazar não gostava

Voo sem pássaro dentro ( 1954): a única maneira de enfiar pássaro  em qualquer coisa  relacionada com a poesia. E mesmo assim...
Adolfo Casais Monteiro, outra vez.  Esquecido  nos dias de hoje pelos jornalistas culturais, mas a gente senta-o neste escanos periféricos que são os blogues. É um tipo de outro mundo, de um mundo em que não se podia escrever, dirigir ou falar. Graças ao botas de Santa Comba e  ao seu regime de contas em ordem.  Infelizmente, aldrabões como este  acham que é o capitalismo que asfixia  a cultura , fingindo esquecer estas amostras de cultura  libertária.

Bem, let's  look at the trailer.  Casais  Monteiro explica como a sociedade nos atraiçoa:

Como é possível  não ouvirmos o estertor das nossas vidas
quebradas de encontro ao pilar das barragens,
esbracejando nos redemoinhos, arrastadas
para o mar imenso da vida não cumprida...





quarta-feira, 15 de junho de 2016

A Natureza

Queriam calor e praia ? Têm chuva.
Adolfo Casais Monteiro chamava a esta técnica de Pessoa a deslocação das  zonas de interesse.
Versão Alberto Caeiro:

Como quem num dia de verão abre a porta de casa
E espreita para o calor dos campos com a cara toda,
Às vezes, de repente, bate-me a Natureza de chapa
Na cara dos meus sentidos.


terça-feira, 14 de junho de 2016

Wurde

Barrento , que o traduziu pela primeira vez para nós (  Cotovia, 1990), regista a intenção  de Bobrowski:  Wurde,  a dignidade ( atitude) que permite deitar fora a dignidade. Belíssimo pretexto.
Bobrowski recebeu prémios literários na RFA e na RDA. Pouco lido? Talvez, mas que nos importa isso?

Abusa como um demente das árvores, dos pássaros, da água, mas é um poeta da paisagem, enfim, aceitemos. Apesar disso, uns pedaços  bem esgalhados ( Sinais de tempo) :

Levo para os cálamos
a minha casa entrançada.
O caracol 
inaudível
passa pelo meu telhado.
Gravado
na palma das minhas mãos
encontro o teu rosto.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Verde e bom

Cesário, quando não está a dardejar os ricos do norte que comem as nossas frutas naturais, arranca estes passes de peito. O segundo verso é revolucionário.

Milady, é perigoso contemplá-la,
Quando passa aromática e normal,
Com seu tipo tão nobre  e tão de sala,
Com seus gestos de neve e de metal.

( 1875, orig. na Moisaco,nº6)

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Criminaliza agora este piropo

Graças a A. Cândido Franco e, sobretudo,  à melhor empresa pública portuguesa, podemos ler  coisas raras. Como João Lúcio. Maldito  no sentido literal porque ignorado, não reeditado, esquecido.
João Lúcio, do grupo da Renascença ( com Pessanha,  Pascoaes, Gomes leal etc) é o freguês de hoje.

De Na Asa do Sonho ( 1913) , uma coisa fabulosa.  Sobre um tema gastíssimo, um toque de calcanhar  precedido de uma chicuelina:

Que se gosto  de ver, aflita entre o cabelo,
O teu cabelo em chuva, uma rosa afogada,
É só para poder, mais tarde, descrevê-lo,
Com a rosa a sofrer, numa rima agitada.

terça-feira, 7 de junho de 2016

The mad dog

Etheridge. Quem quiser conhecer. 
Isto é o que se chama punch, suponho:

Lord she's gone done left me done packed / up and split
and I with no way to make her
come back and everywhere the world is bare
bright bone white crystal sand glistens
dope death dead dying and jiving drove
her away made her take her laughter and her smiles
and her softness and her midnight sighs--

Fuck Coltrane and music and clouds drifting in the sky
fuck the sea and trees and the sky and birds
and alligators and all the animals that roam the earth
fuck marx and mao fuck fidel and nkrumah and
democracy and communism fuck smack and pot
and red ripe tomatoes fuck joseph fuck mary fuck
god jesus and all the disciples fuck fanon nixon
and malcom fuck the revolution fuck freedom fuck
the whole muthafucking thing
all i want now is my woman back
so my soul can sing

segunda-feira, 6 de junho de 2016

Fascismo na poesia e a opinião de Hatlen sobre as raízes marxistas do fascismo

D'Annunzio e Pound. Brasillach  não conta,  não era poeta, Pierre Antoine-Costeau ( irmão do mergulhador) também não.D'Annunzio trouxe-o algumas vezes aos blogues, pré-futurista, teve o seu lugar. Pound é de outra galáxia. É o único.

 Burton Hatlen, amigo de Ginsberg, académico, militante anti-Vietname e anti guerra do Iraque,  e fundador de campus literários marxistas-socialistas:


Hatlen explica duas coisas:
a) a conexão entre fascismo e marxismo,
b) por que motivo não há uma poesia fascista. 

A primeira ilustra o assunto que tanto incómodo causou recentemente cá na terra. A segunda serve-me: uma teoria geral da destruição não conhece a linguagem da criação.

domingo, 5 de junho de 2016

Bursa

I’d been waiting years
Until the Prophet came
He held forth all night
Smoked all my cigarettes
I didn’t understand a thing

( trad  Wiesiek Powaga 2007)

 Andrzej  Bursa era  um polaco e um  personagem cheio de humor. Nasceu em 1932 , publicou pela primeira vez aos 22 anos, morreu aos 25.  Desmente a maneira pomposa como os palúrdios citam a famosa frase.  O próprio  Adorno explicou  melhor depois ( Negative Dialectics):
"Perennial suffering has as much right to expression as a tortured man has to scream; hence it may have been wrong to say that after Auschwitz you could no longer write poems. But it is not wrong to raise the less cultural question whether after Auschwitz you can go on living--especially whether one who escaped by accident, one who by rights should have been killed, may go on living".

sexta-feira, 3 de junho de 2016

Púbico/privado

Ulla Hahn defende que não existe separação entre o público e o privado , os dois pólos têm de estar sempre ligados e que  uma  das grandes contribuições do  movimento feminista foi tornar essa conexão óbvia de novo ( numa entrevista citada  aqui) . É capaz de ter razão.

Como é que isso aparece na poesia de Hahn? Por exemplo:

Faço o meu ninho na axila
do homem com o elmo de ouro. Se ele anda
eu imóvel ando também. Se ele dobra
o corpo eu em pé faço o mesmo.

( trad. de João Barrento)

quinta-feira, 2 de junho de 2016

O twitter em 1797

4 de Abril de 1797. Schiller escreve   a Goethe. Correspondem-se imenso. Nesse dia ,  sobre Filoctetes e  As Traquínias: as personagens  são máscaras e não indíviduos, sendo assim mais fácil manifestar a sua natureza. 
Goethe responde no dia seguinte ( um twiter  pré-histórico):  as personagens da poesia  antiga  traduzem, como as figuras da escultura , uma ideia abstracta, atingem  a perfeição graças ao que podemos  chamar de estilo.

Heranças do estilo? Por exemplo, Ungaretti, Sentimento del Tempo, 1933. Os mortos só conhecem  o som da relva a crescer, contentes de o homem não a pisar :

Hanno l'impercettibile sussurro,
Non fanno più rumore
Del crescere dell'erba,
Lieta dove non passa l'uomo.